8 de fevereiro de 2025

Minha briga com o capitão – o naufrágio de Mar Grande

Por

REDAÇÃO - PA4.COM.BR

Acidente com lancha que faz ligação Salvador-Itaparica deixa 18 mortos. (Divulgação)

Francisco Nery Júnior

 

Não sei se ele era de longo curso. Mas era capitão. Usava galões no ombro e tudo. Eram cinco horas da tarde e queríamos ir de Mar Grande, na ilha de Itaparica, para Salvador. O barco era de madeira e é sabido que o vento da tarde entre as duas cidades não brinca em serviço. A sua tarefa é soprar. Nenhum censura ao seu expertise, que deveríamos chamar de competência ou capacidade. No barco, nós os passageiros – e passageiro em Salvador está de antemão livre de todos os seus pecados – é que devemos respeitá-lo. Sim, preparo e competência se impõem por si só. Diploma é apenas papel passado, carimbado e autenticado. Para o sucesso, é só ter tempo, paciência e dedicação como o personagem de Balzac, Le Cousin Pons.

 

Desconfiado e matreiro, com todo cuidado para não ferir quem presumivelmente tem respeito pelo mar formidável (respeito é bom e não faz mal a ninguém), indaguei pelos coletes salva-vidas. Estavam escondidos e eu não podia vê-los. Pois o mestre não gostou. Entendeu que eu estava lhe faltando com respeito. Eu havia fechado questão para fazer o meu serviço militar na Marinha do Brasil. Mas o colega de mar nada sabia. Ele, afinal, não tem obrigação de consultar o currículo de todo e qualquer passageiro; mormente aquele que considera desprezível. Todavia, a vida era minha naquela hora, a minha e a da minha mulher. Quem, abaixo de Deus, com mais responsabilidade para com a vida do que nós mesmos?

 

Francisco Nery Júnior foi homenageado em 2015 com título de Cidadão de Paulo Afonso. (Foto: CMPA)

Ângela até procurou relevar, deixar pra lá. Pra que brigar? Aplicar o simpático jeitinho brasileiro que muitas vezes ceifa vidas. Acatando a assessoria da esposa, apenas disse ao meu amigo capitão que simplesmente não faria a travessia se ele não me garantisse a existência dos benditos coletes. Apareceram finalmente em baixo dos bancos da embarcação e chegamos em Salvador em paz e com vida.

 

Vamos procurar não cacetear o serviço de transporte Itaparica/Salvador, a despeito da perda de vidas preciosas no naufrágio de hoje pela manhã. O serviço, para economizar literatura, é triste e desprezível. O governador Rui Costa planeja ir à China em busca de recursos, tudo indicando que a sonhada ponte para a ilha heroica do século dezenove vai sair. Por ela e pelo metrô, ainda pela revitalização dos trens suburbanos, o meu voto vai para a reeleição desse governador, ex-aluno do também competente professor Arleno, diretor do IFBA de Paulo Afonso, ambos renitentes quebradores de barreiras.

 

A economia de impropérios ao serviço da travessia também se baseia no fato de nós devermos prestar um pouco mais de atenção na segurança dos nossos serviços, mormente porque pagamos por eles. Acidentes acontecem, falhas podem ocorrer, mas, mais uma vez, a vida é nossa e quem morre é que perde a vida segundo uma filósofa baiana. Nada de temer cara feia. O Brasil já foi campeão de acidentes de trabalho. Saiu da rabada por força da dedicação de jovens preparados nas nossas escolas [para sua prevenção].

 

Ademais, em se tratando de prevenção de acidentes, em se tratando de evitar a morte de pessoas, por que não aulas de natação nos currículos escolares? Por que morrer por não saber nadar? Incompreensível alguém morrer por não saber nadar. Como a morte de um indivíduo formado é sempre prejuízo para a economia, a responsabilidade de o cidadão aprender a nadar passa a ser questão de estado, embora seja, ao mesmo tempo, questão de responsabilidade para consigo mesmo e para com os seus dependentes. Sabemos de mortes por afogamento em virtuais poças d’água.

 

Será que o leitor tem a compreensão do cronista? Se não, pasme: Éramos setenta e cinco conscritos da Marinha. Servíamos na Base Baker em Salvador. Embora cobrasse com renitência aulas de natação (eu já sabia nadar e queria era lazer), cinco de nós, marinheiros formados, deram baixa sem saber nadar. Marinho morreu, anos depois, em um pequeno lago nos arredores de Salvador – por não saber nadar.

 







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